AC Junior

Projeto Negros da Boa Vista

APRESENTAÇÃO

por Jardelly Lhuana

No Brasil, as Irmandades Negras remontam ao século XVII, com festejos a Nossa Senhora do Rosário. Já na região do Seridó, as primeiras irmandades datam do final do século XVIII.

Na cidade de Jardim do Seridó, essa devoção teve início no ano de 1863, por Joaquim Antônio do Nascimento. A criação da Irmandade do Rosário aconteceu em 1885, pelas famílias Caçote e Dantas. Antônio Caçote (meu trisavô paterno), pai de minha bisavó paterna, Dona Inácia caçote, já participava da irmandade ainda quando era escravo no sítio São Roque, município de Ouro Branco/RN.

O apelido “caçote”, faz referência a um anfíbio comum na região do Seridó cujo salto é bastante alto. Diz-se que o “dono” do meu trisavô paterno, passou a chama-lo pela alcunha de “Antônio caçote” pelo conjunto de pulos coreografados enquanto este “brincava” a festa.

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião festeja anualmente, entre os dias 30 de dezembro e 01 de janeiro com o grupo de Jardim do Seridó e o da comunidade quilombola da Boa Vista, município de Parelhas, a conhecida festa de Nossa Senhora do Rosário.

O grupo da Boa Vista dos Negros participa das festividades em comemoração a Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião desde 1863, já que nesse período o município de Parelhas era pertencente administrativamente ao município de Jardim do Seridó. E mesmo após a Emancipação Política, os vínculos de irmandade continuaram entre os dois grupos que ainda hoje se confraternizam.

No entardecer do dia 30 de dezembro, a Casa do Rosário recebe os irmãos que chegam da Boa Vista e ali se acomodam durante toda a festa. A partir das 18hs acontece a recitação do Rosário defronte a Casa e após o desbulhar do terço, os negros do pulo (dançarinos da dança do espontão) saem em procissão juntamente com a comunidade jardinense até a Igreja Matriz da cidade, onde ocorre o novenário da festa.

No dia 31 de dezembro, sob o crepúsculo vespertino a pacata terra da Imaculada Conceição urge em festa. É dia de conhecer a “Rainha do Ano” da Irmandade dos Negros do Rosário que se encontrará com seu rei defronte a Igreja Matriz e lá serão coroados pelos “Reis Perpétuos” e ovacionados com aplausos e elogios pela sociedade em geral. É a noite de encontro das figuras imperiais negras. Dois cortejos inundam as vielas da cidade de movimento. O rei, com seu paletó branco desde outrora usado por seus ancestrais, com seus séquitos saem da Casa do Rosário em busca da sua rainha. Esta por sua vez, ornada com um fabuloso vestido branco todo trabalhado em bordados manuais, em outro canto da cidade anseia pelo encontro com seu rei. Ambos são acompanhados pelos grupos de negros do pulo. Ao encontrarem-se em frente a Igreja Matriz, os dois grupos fundam-se em um só para cantar e dançar em homenagem as majestades negras que ostentam suas coroas imponentes.

Já no dia 01 de janeiro, último dia da festa, o som dos tambores e pífaros anunciam que a Missa Solene está para acontecer, seguida de um novo cortejo com as majestades negras que caminham nas ruas da cidade. O cair da noite se mistura com a cor da pele dos novos reis negros que ali serão coroados e reinarão na próxima festa, no ano que medrou-se.

A festa dos Negros do Rosário sempre esteve presente na minha história, uma vez que se configura como uma festa na qual toda a família se reunia para protestar toda a devoção a Senhora do Rosário. Sendo bisneta de Dona Inácia Caçote que por muitos janeiros ocupou o lugar de Rainha Perpétua (por 72 anos) da Irmandade dos Negros do Rosário de Jardim do Seridó, a coroa não estava longe de me investir de autoridade um dia. Assim, no ano de 2008, o grande dia tornou-se realidade no tempo e no espaço. Fui coroada, para o júbilo de meus bisavós paternos, Rainha do Ano. Desde então o reinado se apresentou na minha vida.

Em uma quarta-feira, dia 31 de dezembro de 2008, dia meio chuvoso, sai da minha residência no bairro Comissão, tendo de mim apenas uma mochila escolar com alguns frisos, uma bolsa de maquiagem, o vestido que havia sido alugado dias antes e uma faixa de seda na cor azul que tinha um letreiro branco que me identificava como Rainha do Ano.

Ao terminar de me vestir, os tambores dos negros avisavam que o cortejo estava de saída. De braços com Seu Enoque, Rei Perpétuo da Irmandade, caminhei lentamente pelas vielas que me levavam ao lugar que minha bisavó sempre fez questão que todas as mulheres da família assumissem um dia.

Em 2012, quase sete anos após a viagem da minha bisavó para (re)encontro com seus ancestrais, eu, a terceira na linhagem das bisnetas, assumi o posto de Rainha Perpétua que por muitos janeiros fora ocupado por ela. E a cada repetição desse ritual, (re)significo seus rastros, dando a esta performance uma nova roupagem, em certa medida original, mas nunca totalmente nova. E há 10 anos estou Rainha Perpétua da Irmandade dos Negros do Rosário de Jardim do Seridó/RN.

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ACERVO

Sertões da Boa Vista dos Negros

por Emanoel Castro

Estas imagens dos “Negros da Boa Vista”, de AC Júnior, muito nos dizem de um universo físico e cultural formado por saberes e crenças onde todos os elos se interligam e que ao longo desses anos garantiram e reforçaram suas identidades na dura trama da vida, nesses embates cotidianos em face de um mundo dominado pelo espírito despótico dos senhores do Sertão.

Entre a fragmentação e a resistência construíram um outro lugar, fundaram um território onde a dimensão lúdica faz parte de suas vidas, presente nos rituais celebrados dentro de um espírito no qual a vida se refaz fundamentalmente na relação com os outros, irmandade laica, herdeiros de um rico cabedal a transmitir para os vindouros os elementos de sua cultura que resistiram às imposições vindas de fora. Vidas renascidas nesse processo dinâmico de criação e recriação de formas de expressões próprias, a reivindicar o que a sociedade lhes tem negado.

Ao preservarem e cultuarem esse legado do passado, sabem melhor que todos de sua importância para o futuro. Nesse lugar os homens não são seres atomizados, dissociados de todos os outros que os rodeiam. Herdeiros de histórias familiares, o morador da Boa Vista é nomeado como filho de, irmão de, parente de. E será no futuro pai de, tio de, avô de. 

De tudo isso nos diz a câmera de AC Júnior. Suas imagens de bem querer retiram do efêmero o visto e o vivido, a compartilhar com os adventícios esses mundos que um dia não serão mais os mesmos. “Sem angústia do precário não há necessidade de memorial. Os imortais não batem fotos entre si. Deus é luz; somente o homem é que é fotógrafo.Com efeito, somente aquele que passa, e sabe disso, quer permanecer”. A fotografia a formar um mundo atemporal, ponte entre os que se foram, os presentes e os que virão. 

Esse é o mundo dos sertões da Boa Vista, povoado pelos que se valem de suas artes e quimeras. Um mundo que se transforma e se reinventa a cada dia, a duras penas, entre alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, vidas que não renunciam ao direito de viver para melhor celebrá-la e dignificá-la.

  1. Debray, Régis. Vida e Morte da Imagem, RJ, Vozes, 1992.

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